Clarice Lispector
Clarice descreve bem
meus momentos, ela parece que entende meus devaneios. Existe uma conexão
visceral quando a leio, eu a busco, a persigo, sempre com encantado interesse.
Esta semana, Marcia Luz me presenteou com o
desenho que ilustra este post. Fui longe nessa imagem.
Lembrei de um grande
e inesquecível amigo que partiu para o plano espiritual com uma pressa, que na
época achei descabida. Foi rápida sua passagem pelo planeta e nossa amizade
teve altos e baixos, muito mais altos, vale ressaltar. Muitos pontos altos,
altíssimos mesmo.
Foram muitos chás na
confeitaria Colombo, em uma mesa numa varanda que não mais está acessível nos
dias de hoje. Qual chá, não lembro, perdido deliciosamente nos idos do tempo.
Esquecíamos da hora tomando chá com gulodices e ríamos e chorávamos e contávamos
segredos escondidos.
Nossa saída da Confeitaria Colombo era quando um garçom com um sorriso simpático nos entregava a conta, ao olharmos em volta víamos as cadeiras de pernas para o ar em cima das mesas, ríamos mais com sensação de déjà vu. Doces lembranças. Doce amigo.
Assisti com ele a nossa primeira ópera, lembro bem, era Turandot, conhecemos Puccini juntos, encantados, inebriados pelas cores, pelos sons, pela magia, "Nessun dorma! Nessun dorma!" Entendíamos tudo sem entender uma só palavra cantada. Ah... quantas adoráveis lembranças!
Mas e o fuscão preto? O primeiro carro desse amigo, comprei dele depois, ele quis alçar outras marchas com carros mais possantes e de preferência zero quilometro “para que eu não tenha que me preocupar com nada”, dizia ele com a consciência de ser desajeitado para trabalhos braçais, queria ser Juiz, mas...não deu tempo.
Ajudei a escolher o fuscão,
fomos juntos pegar na concessionária, cheirinho de carro novo. Nunca um carro
foi tão parado nas blitz policiais. "Blitz, documentos... só temos
instrumentos..." mas sempre tínhamos documentos em ordem, ambos não
transgredíamos as Leis pois já éramos transgressores das normatizações sociais
que não engolíamos tão facilmente. Rebeldes discretos éramos nós. Vivíamos
livres das amarras convencionais, criávamos nossa própria história. Cultura Brasileira
era a matéria que eu oferecia a lição, Geometria Euclidiana era a vez dele. Nos
conhecemos na faculdade e parecíamos amigos de infância, sabíamos tudo um do
outro. Era uma cumplicidade só.
Sinto saudade, saudade boa sem lamentações, saudade do amigo, do fusca, do tempo vivido. Esse fusca está plasmado na minha memória, como esse amigo querido.
Estou tranquila com a saudade, sei que nos encontraremos quando a viagem for a minha, sem pressa. Lembraremos do fuscão preto e de todos os vínculos que nos uniram, esses vínculos não ficam perdidos no tempo, ficam arquivados para acessar no futuro encontro.
Até lá, deixo meu
carinho para você Gilmar, meu amigo querido e minha gratidão a Marcia Luz que
sem saber, trouxe essa possibilidade de história. O fuscão preto, imagino,
continua a vagar por aí, meu amigo no outro plano astral, eu por aqui contando
e recontando as miçangas de minhas histórias. "Lembranças que nos trazem
sorrisos e lágrimas ao mesmo tempo.”